As doações destinadas a amenizar os impactos de pandemia de covid-19 ultrapassaram R$ 5,5 bilhões no Brasil. Um montante, sem dúvida, bastante elevado para um País que historicamente não tem uma cultura de doação.  O Brasil é o 74º colocado no Ranking Global de Solidariedade da Charities Aid Foundation (CAF), que consolidou os dados de uma década em 126 países, com 28% de doadores como pessoa física. Os 10 primeiros países do ranking têm pelo menos 50% doadores em sua população.

O volume de doações e o significativo aumento de doadores com a eclosão da pandemia nos fazem crer que podemos estar avançando na criação de uma cultura até então, praticamente, inexistente no País, que é a doação de recursos para iniciativas que contribuam com melhorias para a sociedade. Mas há pelo menos três importantes obstáculos ao desenvolvimento de uma cultura de doação, que viabilize volume relevante e permanente de recursos para problemas sociais que estão na base da enorme desigualdade em nosso País: a  motivação para doar, a garantia de que os recursos cheguem a quem precisa e cumpram a finalidade para a qual foram destinados e o incentivo às doações por meio de tratamento tributário diferenciado.

No Brasil, ao que parece, o principal motor da prática de doações é a crescente desigualdade social. A mobilização que tivemos nos últimos meses nos dá a percepção de que estamos avançando na criação de cultura de filantropia, mas a motivação por trás dela permite supor que, em alguns casos, é apenas a manutenção do hábito de fazer contribuições pontuais em momentos críticos, nem sempre movidas por pura solidariedade. 

A perda de renda de milhões de pessoas, especialmente entre as classes com menor nível de renda, acendeu o sinal de alerta para muitas empresas e, nesse contexto, as generosas doações podem ser uma simples ação por sobrevivência e sustentabilidade dos negócios.  A questão é que assim como os efeitos da covid-19, a desigualdade e a falta de oportunidades para uma grande parcela dos cidadãos brasileiros têm efeito negativo nos negócios e para a sociedade como um todo e isso não vai ser minimizado com mobilizações pontuais a cada pandemia ou incidente de grandes proporções, como inundações e desmoronamentos.

Em tais situações, é comum a mobilização de empresas e pessoas físicas para ajudar as vítimas, seja com recursos financeiros ou doação de roupas, alimentos e outros produtos. Porém, muitas vezes eles não chegam a quem de fato precisa, seja pela complexa logística envolvida, pela ineficiência na gestão ou mesmo por desvios. Assim, fica claro que não basta apenas doar, é preciso garantir que os recursos sejam bem geridos e tenham seus impactos mensurados de forma efetiva.  

Nesse sentido, a organização não governamental (ONG) Gerando Falcões é um dos exemplos mais recentes do quanto a eficiência na gestão e a transparência fazem a diferença para que os recursos doados cheguem a quem necessita. Ao adotar um modelo de gestão inspirado nos mecanismos de administração de empresas bem-sucedidas, com metas, indicadores de performance, ritos de gestão e plano de carreira, a ONG aumentou significativamente a captação de recursos, por meio de doações de grandes empresários do País e, consequentemente, multiplicou a quantidade de pessoas beneficiadas por suas ações.  Outro aspecto emblemático da Gerando Falcões é o fato de ter sido criada dentro da própria comunidade onde atua. É gerida por quem conhece a fundo as necessidades de quem se propõe a ajudar e está muito próxima deles, porque faz uma atuação in loco. 

Um terceiro obstáculo ao desenvolvimento de uma cultura de doação, mas não menos importante, é a falta de incentivos tributários. O Brasil é um dos poucos países que não estimulam a solidariedade por meio de tratamento diferenciado. As doações, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, para organizações da sociedade civil sem fins lucrativos (OSC) são tributadas pelo imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD). Somos um dos poucos países que não prevêem tratamento diferenciado para doações a OSCs. 

Mesmo com tantos entraves, as doações para causas sociais vêm aos poucos ganhando corpo entre empresários brasileiros que fizeram fortuna, a exemplo do que acontece em outros países. O empresário Elie Horn foi o primeiro brasileiro a aderir ao The Giving Pledge, a iniciativa criada por Bill Gates e Warren Buffet para incentivar as contribuições para filantropia. Horn doou 60% de sua fortuna para causas sociais. No ano passado, Carlos Wizard trocou São Paulo por Boa Vista, capital de Roraima, na fronteira com a Venezuela para ajudar os milhares de refugiados venezuelanos. Exemplos como esses nos fazem crer que podemos estar avançando na criação de uma cultura de doação de recursos para iniciativas que contribuam com melhorias para a sociedade. Seja por filantropia ou por pressão externa.

A prática é muito difundida em países da Europa e nos Estados Unidos. São muito comuns as doações feitas a universidades e instituições culturais. Universidades de primeira linha como Harvard, Stanford, Princeton e Yale contam com apoio financeiro desses fundos bilionários. O chamado endowment. No exterior as doações se concentram em instituições acadêmicas e culturais (o Louvre, em Paris, e o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, também arrecadam recursos para fundos patrimoniais), áreas fundamentais para a formação de uma sociedade melhor.

Os endowments são geridos como fundos de investimento de longo prazo disponíveis no mercado financeiro. Esse instrumento é recente no Brasil, criado pela lei 13.800, no início do ano passado. São estruturas financeiras criadas para direcionar as doações e dar sustentabilidade de longo prazo a instituições sem fins lucrativos. Dessa forma, perpetuando o valor doado e usando somente os rendimentos para os fins desejados. Nos Estados Unidos, os endowments de todas as instituições somam quase US$ 600 bilhões, segundo dados do Departamento de Educação americano. 

Somente com a adoção de leis e regulações, que normatizem e incentivem as doações, e a incorporação de práticas de gestão e de governança pelas instituições dedicadas a causas sociais, conseguiremos desenvolver uma cultura de doações no Brasil e contribuir para a criação de oportunidades e redução da desigualdade tão prejudicial a todos nós.

Artigo publicado no Valor Econômico em 23/07/2020

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/e-preciso-que-as-doacoes-cheguem-a-quem-precisa.ghtml

Nelson Cury Filho é especialista no desenvolvimento da família empresária, consultor na Cedar Tree Family Business Advisors, mentor, autor do livro: “Sucessão ou Morte da Empresa Familiar” e fundador do Fórum Brasileiro da Família Empresária – FBFE.

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